Reflexões - Marcos Dainesi

Misericórdia – O Amor em Ação.

1. Escolha do Tema.

a. A mera constatação de que a minha salvação só se dará como fruto da Misericórdia Divina e não pelos meus próprios méritos, faz com que eu seja um grande “fã” dela!!!

b. Recebi o convite para discorrer sobre um tema na nossa missa de entrega, +/- no 2º domingo da Páscoa, que, por “coincidência” – na verdade deixei de acreditar em coincidência há um bom tempo – é o domingo da Misericórdia.

c. O tema estava, assim, escolhido! E, uma vez escolhido, foi desenvolvido em grande parte sobre a encíclica Dives in Misericordia do Papa João Paulo II, divulgada em 1980.

 

2. O Domingo da Misericórdia – um pouco da história.

Esta dedicação, foi feita pelo Beato João Paulo II em 2000, ano jubilar e, também, o ano da canonização de Santa Justina Kowalska, definida como a “testemunha e mensageira do amor misericordioso do Senhor”.

Irmã Justina era da Congregação de Nossa Senhora da Misericórdia, na Polônia. Aos 26 anos, em 1931, teve uma visão de Jesus, de cujo coração emanavam 2 raios de luz, um vermelho e outro claro. Em outra visão perguntou o significado destes raios e Jesus lhe disse: “o claro significa a água que justifica as almas e o vermelho é o sangue que é a vida delas. Ambos os raios jorraram das entranhas da Minha Misericórdia, quando na cruz o meu coração foi aberto pela lança”. O então papa João Paulo II, no sermão um ano após a canonização de Santa Justina, no segundo domingo da Páscoa – o domingo da misericórdia, faz a seguinte reflexão: “O sangue recorda o sacrifício do Calvário e o mistério da Eucaristia; a água, segundo o rico simbolismo do evangelista João, faz pensar no batismo e no dom do Espírito Santo. Através do mistério deste coração ferido, não cessa de se difundir também sobre os homens e mulheres da nossa época o fluxo reparador do amor misericordioso de Deus”.

3. Diversos Ângulos de uma mesma Misericórdia.

Fui olhar no dicionário, procurando a definição de misericórdia. É interessante como a gente é carente de “definições”, eu pelo menos sou... Parafraseando Descartes, “defino, logo entendo”: super racional, mas tão pobre de conteúdo e significado! Óbvio que não consegui uma definição que me satisfizesse, nem na Wikipedia e comecei a entrar em pânico. Então pensei: vamos começar do começo e “no princípio era o Verbo”. Assim vejamos.

No Antigo Testamento, em especial na pregação dos Profetas, misericórdia significa a especial força do amor, que prevalece sobre o pecado e sobre a infidelidade do povo eleito. É a esta misericórdia que recorre o rei David, confrontado com o seu pecado pela morte de Urias; também dela Job se vale após sua rebelião contra os males que o afligiam e Ester, consciente da ameaça contra seu povo.

Representa o Deus Fiel a si mesmo e à aliança com seu povo: “Amo-te com amor eterno, por isso ainda te conservo os meus favores” (Jer 31,3). É a misericórdia se sobrepondo à justiça, pois como no tema de hoje, ela é o amor em ação e se “Deus é Amor”, cfe Jo, a justiça serve a Ele e não o oposto.

Mas isto era lá, no AT, aquele povo cabeça dura e Deus tinha que ter muita paciência mesmo! No Novo Testamento esta manifestação da misericórdia tinha que ser diferente, afinal Cristo estava ali, Deus e Homem, Tomé podia colocar o dedo em suas chagas, uma presença real... Aí procurando exemplos da misericórdia no NT (Novo Testamento), comecei a ter uma grande dificuldade: não por falta de exemplos, mas porque o NT poderia ser descrito como “O Livro da Misericórdia Divina”. Ela está lá, em todos os lugares, de diferentes formas, mas sempre manifesta em AÇÃO: ela não é passiva, conceitual, não é uma definição estática.

É uma ação na direção daquele que clama em seu sofrimento, daquele que se confessa impotente, seja física ou moralmente. Na direção daquele que, confrontado com seu pecado e sua miséria pessoal, passa pela sublime experiência de ver, sentir, quase tocar, o Amor que transforma a miséria em misericórdia.

Quem de nós, naqueles momentos de maior angústia, dor excruciante, voltando-se para Deus, não recebeu aquele toque divino, aquela sensação indescritível da presença quase física do Pai, ao nosso lado? A certeza “irracional” de não estar só, de Ele estar ali, naquele exato momento em que o tempo para. Não o Deus onipresente – que está em todos os lugares, mas o meu Pai, que me chama pelo nome e partilha do meu sofrimento e me consola. E a nossa alma, que procede dEle e reconhece a sua presença e, ao fazê-lo, entra em êxtase e irradia por todo nosso corpo mundano uma brevíssima e intensíssima experiência da Vida em Deus, um “trailer” do Paraíso!

Mas voltando ao NT e suas muitas expressões da Misericórdia, a encíclica mencionada oferece um exemplo magnífico, na parábola do Filho Pródigo (achei interessante que o exemplo usado, em nenhum momento usa a palavra “misericórdia” e, ainda assim, reflete a sua essência: de novo a questão da busca por definições e a pobreza das palavras frente à riqueza do significado...).

A parábola todos conhecemos, mas vou ressaltar alguns aspectos sobre os quais eu nunca havia refletido adequadamente e que ajudam no contexto do tema.

Primeiro, de que o filho que parte para gastar sua herança numa grande “balada” representa não somente todos nós, hoje, mas todos aqueles que, ao usar de seu livre-arbítrio e optar pelo pecado, perderam a herança da graça – desde Adão e Eva. Ele representa todas as situações, individuais ou coletivas/sociais, em que rompemos a aliança com Deus. Outro aspecto interessante é a figura da dignidade de filho (de Deus), que o filho pródigo percebe ter perdido, quando faminto (não só de pão!), lembra-se de como são tratados os servos de seu pai – com dignidade: é aqui que se inicia a conversão, ao buscar recuperar a dignidade, ainda que “não mereça ser chamado de filho”.

A seguir vemos novamente a misericórdia sobrepor-se à justiça, pois o “justo” seria que, de fato, viesse a ser tratado como alguém em dívida para com o pai, por tê-lo magoado e ofendido, esbanjado seus bens, etc. Justo! Mas a misericórdia vai além e rejubila-se com a volta do filho, com o fato de que o bem mais importante está preservado – a vida! E transpondo o pai da parábola para o nosso Pai celeste, Ele que nos amou primeiro é fiel ao seu amor acima de quaisquer que sejam as nossas faltas: o Amor é maior do que o pecado. Lembremos do hino à caridade  (1Cor 13, 4-8) : “o amor não guarda ressentimento, rejubila-se com a verdade...tudo espera, tudo suporta”.

Um último ponto sobre a parábola: temos muitas vezes a impressão de que há uma relação de desigualdade entre aquele que exercita a misericórdia (condescendente: aquele que tenta acentuar uma superioridade – real ou não, tratando de maneira paternalista outra pessoa: Dicionário Houaiss) e aquele que a recebe, de modo que este último tenha sido diminuído em sua dignidade. Mas, ao enxergar em profundidade as conseqüências do seu pecado e arrepender-se verdadeiramente, transforma-se o filho e adquire uma nova, renovada dignidade. Esta é reconhecida de imediato pelo pai, que enxerga o bem extraído de uma situação de pecado, de tal forma que o pecado em si já não tenha significado. Neste contexto a encíclica expressa “a Misericórdia manifesta-se com sua fisionomia característica quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas de mal existentes no mundo e no homem”. Desculpar é humano, perdoar é deixar-se fazer instrumento da misericórdia divina. Desculpar é condescendente, perdoar é enxergar a renovada dignidade daquele que reconhece sua falta. Na missa solene de Páscoa um determinado trecho diz algo como “que culpa gloriosa, que nos mereceu tão grande reparação”, mais ou menos isto... Novamente, a Misericórdia em ação, transformando o mal num bem maior!

O amor de Deus se revela e atua como misericórdia no nosso dia-a-dia e nos chama a sermos, nós também, misericordiosos. Aliás, que exemplo mais sublime deu Jesus, na cruz: “Pai, perdoai-os, eles não sabem o que fazem”.

Aqui se suscita uma aparente dicotomia entre a justiça e a misericórdia, quando a primeira incitaria a ira divina sobre aqueles que o crucificaram e a segunda traz em si o perdão. Portanto, não nos basta ser justos, mas misericordiosos! E muitas vezes clamamos por “justiça”, quando na verdade queremos vingança; e falamos “bem feito!”, quando um desafeto se dá mal; e nos arvoramos de juízes a condenar o assassino, o estuprador, etc, sem lembrar de que Jesus morreu por ele também... Sem lembrar que recebemos gratuitamente o dom da vida, mas que a vida em si não nos pertence, nem mesmo a nossa, pois ela está guardada pelo Pai, que “nos amou primeiro”. Fácil falar, mas muito difícil perdoar... Principalmente quando deixa de ser uma questão conceitual, abstrata, distante e passa a ser representada pelo mau amigo do seu filho, que o desvia do caminho; ou do chefe que te prejudica e maltrata por pura insegurança, ou do esposo/esposa que desrespeitam um ao outro. Dentre as revelações de Jesus à irmã Faustina há a seguinte afirmação: “A humanidade não encontrará a paz, enquanto não tiver confiança na misericórdia divina”.

Na passagem do evangelho que fala da mulher pega em adultério, o conhecido desfecho do “quem não tiver pecado, atire a primeira pedra”, termina com Jesus e a mulher, sozinhos, pois os demais, reconhecendo-se em pecado, foram embora um a um. E vale notar que o benefício não é somente para a mulher perdoada, mas para todos que lá estavam e se reconheceram em pecado: a misericórdia é para todos, especialmente para os pecadores (como eu disse no começo, sou fã dela...). Santo Agostinho fala deste episódio assim:    e ficaram só os dois, a miséria e a Misericódia”, de novo o “misere” transformado pelo “cordis”, latim para coração, o coração onde mora o amor, o amor que transforma.

Jesus nos mostrou, em sua vida no meio de nós, várias faces do amor. Porém, em comum a essas demonstrações vemos sempre um amor em ação, contextualizado na condição humana, com todas as suas angústias e limitações e (again!) citando a encíclica: “precisamente o modo e o âmbito em que se manifesta o amor são chamados na linguagem bíblica de misericórdia”.

4. A Igreja e a Misericórdia.

Alguns teólogos afirmam que a misericórdia é o maior dos atributos e perfeições de Deus.

A igreja proclama este atributo e oferece o acesso a ele, a todos que o buscarem, na forma da Palavra, colocada em nossas vidas durante a homilia; na Eucaristia, que nos recorda o sacrifício de Jesus e sua eterna aliança conosco, relembrando de que é mais forte do que a morte e, também, no sacramento da Reconciliação. Neste último todos nós podemos experimentar a misericórdia, na forma do amor que é mais forte do que o pecado. Sendo um dos aspectos da perfeição de Deus, ela também é infinita, eterna. Portanto, também sem fronteiras ou limitações é o perdão, sumo ato de misericórdia, de forma que nenhum dos nossos pecados pode prevalecer sobre ela, ou impor-lhe limitações...

5. Fechamento.

João nos diz em seu evangelho: Deus é amor. Este amor que em sua expressão maior se materializou em Cristo, amor cuja ação experimentamos todos os dias em nossas vidas pela obra do Espírito Santo – que move tudo em todos.

Portanto, o Deus uno e trino, que é amor em ação, é Ele próprio a definição que eu procurava lá no início da preparação do tema de hoje: “Misericórdia – O Amor em Ação”.

 

 

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